22 março 2008

Summertime

1. Todas as coisas, sobretudo as nomeadas, sofrem um processo de diluição nas águas da memória. Essas águas são o tempo em estado líquido e, só falsamente, no literário (seja lá o que isso for) assim as tratamos como verdade.O tempo é as mais das vezes canalha. Vive para construir um imenso obituário.

2. Lá fora desliza, negro, o lençol do Douro sobre as suas próprias águas. Este é o ponto em que está prestes a diluir-se na espuma do Atlântico que há milénios chega à barra. Sem propaganda, pelo menos até hoje, sem propaganda, sem ruído. E já é noite e os minutos de que o tempo é feito expressam-se, para os que vivem ainda, nos luzeiros do firmamento ou em néon, luz artificial.
Cá dentro é o bar do Clube Literário do Porto. Dois de Junho de dois mil e seis. As portadas abertas, para o exterior, deixam entrar gargalhadas de anjos dos dois sexos bebedores de uma cerveja só.Nas paredes agiganta-se a convocada presença do Mestre José Rodrigues. São os seus desenhos que nos arrancam os olhos e que provocam batidas extra do corpo a que chamamos coração.Matéria de tempo, corpo, ritmo e melodia, ali, mais ao fundo da sala, o Quarteto de Clarinetes Ébano. Alberto Bastos. José Moura. Manuel Moura. Marta Oliveira.

3. - Viva Porgy! Meu maravilhoso mendigo, negro mais bonito não há! - Olá Bess! Minha negra linda, minha mulher, meu amor!

Entravam à sucapa, como benfazejos fantasmas, que ninguém deu por eles, os dois arquétipos de uma primeiríssima ópera americana. De George Gershwin, segundo o libreto de Edwin duBose Hayward de título”Porgy”. “Porgy and Besss”. Talvez os dois personagens tenham ficado connosco até ao final do concerto. Se o fizeram, bem hajam!

Podíamos estar todos no Carnegie Hall, no seu ambiente particular. Na mágica do tempo dos metrónomos compreendíamos, ali na ambiguidade espacial, através do desempenho daqueles quatro e dos seus clarinetes o fenómeno original que foi Gershwin. De quem diziam ter sido um preciosista… um insatisfeito.

Foi como se um pássaro cantasse na noite e depois se recolhesse, melancólico a rever uma por uma as notas que gastara no canto. Todas as coisas, sobretudo as nomeadas, sofrem um processo de diluição nas águas da memória…

4. Summertime.

José Carlos Martins

22 de Junho de 2006

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Porque quando se promete se deve cumprir, aqui fica um OLÁ !
Dia 24 lá estaremos.

bons sons...

segunda-feira, 30 outubro, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Pois é! um comentário vou tentar fazer, mas arranjar palavras depois de assistir a um concerto do "Quarteto Ébano" é complicado...
mas como com uma palvra conseguimos dizer muita coisa... eu digo... EXCELENTE... FENOMENAL...
beijinhos

quarta-feira, 06 dezembro, 2006  
Blogger Viagem pelas ruas da amargura said...

Eu ainda não ouvi uma única nota do Quarteto Ébano, mas depois do que o Zé, desculpem, o José Carlos Martins, escreveu! fico muito atento no meu cantinho à espera de um pequeno sinal: quero ficar na última fila, sozinho, cabeça erguida de pensamento virado para a madeira negra que os meus olhos vão encontrar.

segunda-feira, 26 março, 2007  

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